DIA DO ÍNDIO

‘Uma peninha na mão e muitas ideias na cabeça’

 “Por causa do Dia do índio, do índio por ele mesmo e do meio ambiente, tomei a pena da autora e decidi, eu mesmo, Guga Niquim, escrever uma mensagem sobre o que se comemora no dia 19 de abril.

Para quem não me conhece, sou o personagem principal do livro infanto-juvenil que tem o meu nome, Guga Niquim – o menino-homem-onça, ’editado pela Oficina Raquel. Fui adotado por índios da tribo matis, no Amazonas, quando fugi de casa. Por causa dessa experiência incrível, quero convidar pessoas de todas as idades – crianças, jovens e adultos – a conhecer o universo indígena.

Quase todos sabemos que desde 1500 as várias tribos indígenas vêm sendo dizimadas e acuadas em áreas cada vez menores e também sofrendo toda sorte de desrespeito. Tudo isso virou banal, poucos se importam.

Mas quase nada sabemos quem são realmente os índios, como vivem, como sonham e por que permanecem índios nesse mundo globalizado.

Quem sabe se começarmos a conhecê-los melhor, nem que seja de pouco em pouco, conseguiremos mudar esse jogo – aproveitando que este ano a Copa do Mundo será no Brasil!

Vamos lá, podemos ser criativos.  Ninguém precisa viver uma experiência tão radical como a minha (para conhecer os índios de perto, tive que virar onça), mas professores e escolas podem dedicar mais atenção e energia ao tema durante todo o ano. E os pais também podem ensinar aos seus filhos sobre os povos indígenas, que também têm tanto a nos ensinar.

Pais e professores podem começar contando estórias, pesquisando tribos, lendas, florestas.  Podem incentivar as crianças a escreverem à Presidente da República e a seus ministros (imaginem o Palácio do Planalto recebendo caminhões de cartas, rsrsrs) perguntando o que o Brasil tem feito de fato para garantir justiça aos povos indígenas.  Podem conseguir filmes, podem criar indivíduos-cidadãos socialmente responsáveis.

Minha proposta como filho acolhido por esses indivíduos tão sensacionais é que 19 de abril não seja apenas uma data simbólica. Mas um dia que deve ser multiplicador da consciência coletiva sobre o respeito à dignidade do índio durante todo o ano. Meu desejo é que todos os brasileiros valorizem e comemorem constantemente a influência do índio sobre a nossa história, os nossos hábitos e a nossa cultura. Mais ainda, que tenhamos consciência do que de fato é ser brasileiro.

Se a criação de um dia especial é para homenagear, vamos dar vida, alegria e sentido ao Dia do índio.”

Guga Niquim – Personagem principal do livro ‘Guga Niquim – o menino-homem-onça’, de Marisa Oliveira, editado pela Oficina Raquel


Primavera paulista

EDITORA OFICINA RAQUEL PARTICIPA DA PRIMAVERA DOS LIVROS DE SÃO PAULO COM LANÇAMENTOS E TÍTULOS SOBRE FUTEBOL

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Roberta Ferraz, autora de Saturação de Saturno: abertura da Primavera de SP.

A Oficina Raquel aposta em paixões: por isso, o futebol, grande paixão nacional, e a poesia, capaz de transformar sentimentos em versos, são os dois eixos vocacionais da editora. Estamos presentes, organizando ou participando de eventos que, além de promover a leitura, dão a ler essas paixões, que encontram solo fértil nos textos de um time de grandes autores que temos a alegria de ter por perto.

A Oficina Raquel estará na Primavera dos Livros de São Paulo, na Praça Dom José Gaspar, no Centro, nos dias 10, 11 e 12 de abril. A editora, neste ano de Copa do Mundo, promove a aproximação do público da feira com títulos que falam sobre a ‘paixão nacional’ do brasileiro; aliando futebol e poesia, a abertura será feita por Roberta Ferraz (foto), autora da Oficina Raquel, que, em 2013, lançou o belo livro de poemas Saturação de Saturno.

Estarão à venda na Primavera dos Livros, promovida pela Liga Brasileira de Editores (Libre), além, é claro, das Saturações de Saturno, de Ferraz, o recém-lançado De pernas para o ar – minhas memórias com Garrincha, de Gerson Suares (autor que é enteado da cantora e viúva de Garrincha, Elza Soares); Dez campos, de Jorge Fernandes da Silveira; ’38 círculos, de Luis Maffei, e Contos da Colina – 11 ídolos do Vasco e sua imensa torcida bem feliz, de Maffei, Nei Lopes e Mauricio Murad; Pequena morte – futebol-arte, antologia poética que reúne poetas e ensaístas; Cronicaturas de futebol, de Fernando Miranda; e Olaria – a conquista da taça de bronze, de Marcelo Paes.

“A coletânea da Oficina Raquel sobre livros de futebol oferece uma leitura multidisciplinar. O leitor poderá pensar o futebol sob as suas diversas perspectivas, além de promovermos o diálogo entre o esporte e a literatura. Neste momento, estamos vivendo uma situação única, com o acontecimento da Copa do Mundo no Brasil, momento oportuno para intensificar a leitura e as discussões sobre o assunto. Hora do borbulhar de opiniões e de colocarmos nossas convicções sobre futebol à prova”, analisa Raquel Menezes, diretora da Oficina Raquel.

Os visitantes que passarem pela Primavera dos Livros encontrarão também os últimos lançamentos da Oficina Raquel: Os três desejos de Octavio C., de Pedro Eiras, O prisioneiro do mundo, de Nelson Sargento, Poética e filosofia da paisagem, de Michel Collot, em primeira tradução brasileira, Signos de Camões, de Luis Maffei e o infantil A menina que não gostava de meias, de Simone Magno, entre outras obras de destaque.

 

SERVIÇO

PRIMAVERA DOS LIVROS DE SÃO PAULO

10 a 12 de abril/2014

Praça Dom José Gaspar – Centro – São Paulo

Editora Oficina Raquel – estande 47

Realização: Liga Brasileira de Editores (Libre)

Parceria: Biblioteca Mário de Andrade e Prefeitura de São Paulo

Apoio: BNDES

Grátis!


POÉTICA E FILOSOFIA DA PAISAGEM, Michel Collot


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C’est à l’horizon, derrière quelque forme ultime et légère qui s’y découpe, une région soudain plus intense de la lumière Du ciel. (…) C’est certainement, imagine-t-on, au moins jê Le fais moi-même Morandi a peint, et souvent, dans ses lacis destructeurs, ces ores de la terre vraie.[1]

 Os estudos de poesia vêm sendo marcados por uma estética do território, sobretudo nos últimos anos, através, por exemplo, da fenomenologia de Merleau-Ponty e dos conceitos de lugar e não lugar, propostos por Marc Augé. A mais recente escola francesa, que faz ecoar a voz do eu-lírico flaneur já presente na poesia baudelairiana, ensina-nos a identificar, na subjetividade dos versos, um espaço de interação reflexiva entre sujeito e ambiente que, se no texto se manifesta pela via da linguagem, no espaço configura-se como paisagem.

Michel Collot, que é professor de Literatura Francesa da Université Sorbonne Nouvelle Paris 3, diretor do centro de pesquisa Écritures de la modernité e, ainda, coordenador do grupo de investigação Recherches sur la poésie contemporaine, demonstra, nesta recolha de textos próprios, cuidadosamente traduzidos sob a coordenação de Ida Alves, professora da Universidade Federal Fluminense, sua postura crítica acerca da relação estreita entre a palavra poética e a paisagem. Tal reflexão estrutura-se em torno do que Collot denomina “pensamento-paisagem”, que tem por base a interação entre sujeito e território, visto que “a noção de paisagem envolve pelo menos três componentes, unidos numa relação complexa: um local, um olhar e uma imagem” (COLLOT, 2013, p. 17). Sendo assim, a paisagem torna-se elemento premente na poesia, visto que ocupa o local do “encontro entre o mundo e um ponto de vista”, não sendo “nem pura representação, nem uma simples presença” (Ibidem, p. 18).

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A partir dessa reunião fenomenológica de que nos fala Merleau-Ponty, entre o sensível e o inteligível, Collot estrutura a sua forma de pensar a poesia e a cultura contemporâneas, com o olhar que se expande no horizonte do visível, sendo preenchido pela linguagem. Assim, a construção do texto se dá a partir da interseção entre natureza e cultura, pois “a paisagem é configurada, ao mesmo tempo, por agentes naturais e por atores humanos em interação constante: é, portanto, uma coprodução da natureza e da cultura em todas as suas manifestações, desde as mais materiais (a começar pela agricultura) até as mais espirituais (pintura e poesia incluídas).” (Ibidem, p. 43).

Logo, a concepção dinâmica da paisagem encontra solo fértil na poesia, visto que “o sentido de um texto, como o de uma paisagem, baseia-se na disposição dos elementos que os compõem” (Ibidem, p. 47), e esse diálogo entre texto e paisagem, privilegiado pelas ideias de Collot, é apresentado, pela primeira vez em português, ao leitor brasileiro, nos dez capítulos que compõem Poética e filosofia da paisagem. Ao prefácio de Ida Alves e ao pequeno texto introdutório, de autoria do próprio Collot, seguem-se capítulos que se destinam a esclarecer, ao leitor interessado em uma estética que privilegia as questões paisagísticas, além do conceito de “Pensamento-paisagem”, as relações entre “Paisagem e literatura”, “Lugares românticos e descrição poética”, “Horizonte e imaginação”, e considerações sobre “O espaçamento do sujeito”, “A crise da paisagem”, “Transfigurações”, “Desfigurações”, “Abstrações” e “A abertura ao mundo”.

O livro percorre, portanto, uma trajetória contemporânea de análise do fazer poético enquanto forma de expressão marcadamente lúdica e que, por isso, caracteriza-se pela interação entre homem e natureza; desse modo, a poética não se limita à atitude mimética, bem como a paisagem não se encaixa, apenas, sob o conceito de obra do humano: apontando para uma ética da relação, a paisagem e o fazer artístico encontram-se no local do olhar, moldam-se a partir da interação do eu com o espaço, e a paisagem, bem como a literatura (ou outras atividades inerentes ao homem), são frutos dessa tentativa de síntese. Convém ressaltar que as questões relacionadas à Intersemiótica, tão em voga nas pesquisas literárias, ao valorizarem o diálogo interartes, aproximam-se dos estudos acerca da paisagem, uma vez que extrapolam procedimentos estéticos de origem mimética ou descritiva, para aproximarem-se, especialmente na contemporaneidade, de uma espécie de amálgama entre diferentes formas de arte, que trata não apenas de representação, mas busca ser espaço de reflexão sobre o homem e sua presença no mundo. Logo, temos, em última análise, uma aproximação entre a paisagem e a tela, ou entre a tela e o texto: todos, afinal, são palco de, ao mesmo tempo, representação e reflexão sobre o horizonte, local onde o sujeito pode se tornar espaço, e vice-versa.

Se “a paisagem é o lugar de uma troca em duplo sentido entre o eu que se objetiva e o mundo que se interioriza” (ibidem, p. 89) e se ela pode ser compreendida como o local de aliança entre o interior e o exterior, esse caminho de mão dupla remete ao fato de que a arte, como o local de manifestação da cultura, é, também, paisagem, posto que é, enfim, o produto de um fenômeno de encontros: cultura e natureza, olhar e horizonte, pensamento e ação; quem vê e quem é visto.

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COLLOT, Michel. Poética e filosofia da paisagem. Organização da tradução: Ida Alves. Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2013. 204 páginas.


[1] Tradução: “É no horizonte, atrás de alguma forma última e leve que nele se recorta, uma região subitamente mais intensa da luz do céu (…). É, certamente, imaginemos – ao menos, faço-o eu mesmo –, um lugar habitável, lá longe – é, novamente, o real. De toda forma, Morandi pintou , e não raro, em suas redes destruidoras, essas orlas da terra verdadeira.” (Yves Bonnefoy, “À l’horizon de Morandi”, L’Éphémère, n. 5, primavera de 1968 (texto retomado em Le nuage rouge, Mercure de France, 1977, p. 112). In: COLLOT, 2013, p. 178.)

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Ida Alves é, ainda, organizadora, pela Oficina Raquel, de Coisas desencadeadas: estudos sobre a obra de Carlos de Oliveira e, em parceria com Carmem Negreiros e Masé Lemos, Estudos de paisagem: literatura, viagens e turismo cultural, no prelo.

Texto de Mariana Caser da Costa


No âmago: Clarice Lispector

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O texto de Clarice Lispector já foi objeto de incômodo, deleite e paixão para muitos. O olhar misterioso que a escritora deixou lançado a fotografias e entrevistas povoa certa mística que contorna o seu nome e nós, leitores, muitas vezes, caímos na tentação de, na paixão da leitura, incluí-la no rol de personagens que brotam de sua pena: Macabea, de A hora da estrela, a Sra. Jorge B. Xavier, de “A procura de uma dignidade” e Angela Pralini, de “A partida do trem”, contos de Onde estivestes de noite, dentre tantas outras personagens, gente, animal ou objeto, são alimentadas pela escrita marcada de Clarice pois, como a própria afirmou, “o personagem leitor é um personagem curioso, estranho. Ao mesmo tempo que inteiramente individual e com reações próprias, é tão terrivelmente ligado ao escritor que, na verdade ele, o leitor, é o escritor”. No bojo desse amálgama, misturam-se Clarice, personagens, leitores e novos textos.

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Essa é, justamente, a proposta de Extratextos I: personagens reescritos de Clarice Lispector. O livro, primeiro volume de uma coleção que planta expectativa sobre futuras releituras, dedica-se a “convidar personagens de autor incontornável, incisivo, de obra conclusa, a renascer, reescritos, vindos de várias mãos”, como lemos na contracapa. Obra publicada pela Oficina Raquel em 2012, organizada por Luis Maffei e Mayara R. Guimarães, também nomes entre os 12 autores-leitores de Clarice, traz narrativas “atrevidas e desavergonhadas”, no dizer de Yudith Rosembaum, responsável pelo prefácio, que entram em “territórios invisíveis até então. Elas querem dizer o que ficou escondido nas entrelinhas da escrita original”. A ler nos vincos entre as linhas claricianas estão os já mencionados organizadores, responsáveis por revisitar, respectivamente, as personagens do conto “A procura de uma dignidade” e “A partida do trem”. Além de Maffei e Mayara, figuram, relendo a fascinante Macabea, Conceição Evaristo e Vera Duarte; Evando Nascimento (Lisette, de “Macacos”, conto de A legião estrangeira); Hélia Correia, que relê as rosas em buquê e Vera Giaconi, que recria a Maria, todas referências ao conto “A imitação da rosa”,  Joseli Ceschim (a galinha, de “Uma galinha”) e o cego de “Amor”, por Silviano Santiago, contos presentes em Laços de Família; os portugueses Maria Teresa Horta e Pedro Eiras colaboram com a releitura de personagens constantes em Felicidade clandestinaUma aprendizagem ou O livro dos prazeres; por fim, cabe a Godofredo de Oliveira Neto a tarefa de ler a própria Clarice Lispector, no conto inédito “É duro como quebrar rochas”. 

Extratextos I é mais que leitura obrigatória, portanto. É espaço de encontro, de deleite, de possibilidades, de uma “cadeia inesgotável de recriações”, segundo Yudith Rosenbaum, que ajuda-nos a concluir, convocando a própria Clarice: “Eu antes tinha querido ser os outros para conhecer o que não era eu. Entendi então que eu já tinha sido os outros e isso era fácil. Minha experiência maior seria ser o âmago dos outros e o âmago dos outros era eu.” Obrigada, Clarice: esta leitura, agora compreendemos, é desejo de ser âmago. 


Futebol em crônicas e caricaturas

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Cronicaturas de futebol: este é o título do mais recente livro de Fernando Miranda, que é, ainda, autor de Transdialogia e organizador de Pequena-morte: futebol-arte, todas publicações da Oficina Raquel, de que Fernando é não apenas colaborador, mas amigo de longa data.

A introdução de Cronicaturas, que conta com desenhos do competentíssimo Vinicius Mitchell, traz à companhia da leitura não apenas os craques dos grandes times, ou as grandes histórias relativas a esses, mas apresenta “uma provocação, um chamar para o dribling. E uma enormidade de contradições que cabem no jogo, seja ele dentro das quatro linhas, seja ele dentro do mundo, o maior campo de todos os campos”. Assim, o autor confirma, na simplicidade de um “joga-se”, que define a sua escrita, neste texto, a metáfora que é, ao “cronicaturar” momentos, impressões e reflexões acerca de jogos, colocar em jogo a própria vida.

Em campo, o leitor pode se deliciar com a escrita sofisticada de Fernando, que passa pela Europa, pela América Latina e, claro, pelo “centro de concentração” que é a mente imaginativa do autor. Deve ser dada atenção especial às ilustrações de Mitchell, que se encaixam perfeitamente ao texto, escrito em uma bela parceria, que se destaca desde o amálgama que intitula essas cronicaturas.

É título para ser lido, relido e reconhecido entre os clássicos futebolísticos desta editora.


Maria Teresa Horta: “Azul cobalto”

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Maria Teresa Horta é artista da palavra celebrada em Portugal, reconhecida por seu engajamento político que ultrapassa questões partidárias para atingir o cerne daquilo que há, talvez, de mais político no fazer humano, que é o ato de fazer literatura. A escritora segue, pois, os apontamentos de Jacques Rancière, em Politique de la littérature (2007), que parte da hipótese de que a política da literatura, não dizendo respeito a uma política divulgada por escritores ou ao engajamento pessoal de um ou outro poeta nas lutas sociais de seu tempo, implica que a literatura faz política pelo simples fato de ser literatura, pois que existe um vínculo essencial entre a política como forma específica da prática coletiva e a literatura como prática definida da arte de escrever.

Assim, o poder do literário finca-se em terrenos que excedem o do belo, ou o do panfletário, mas que se caracterizam pela arte que difundem, pelas ideias que espalham, pelo belo que leva ao incômodo, ao questionamento, à reflexão. Ato político inerente ao literário.

Atenta às questões do feminino, da política de seu país e a tantas outras questões que perpassam sua arte, Maria Teresa Horta oferece, agora, ao público brasileiro, em publicação pela editora Oficina Raquel, uma coletânea de contos que se desdobram, por uma temática que remete à mulher, especialmente à relação entre mãe e filha, em configurações imagéticas que dão à leitura questões pertinentes à atualidade.

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O conjunto de seu texto faz referência a questões antigas na literatura, especialmente a portuguesa, como o fingimento e a relação com a História do país, mas também toca assuntos em voga no campo dos estudos literários, a saber: o diálogo entre as artes – a pintura que serve de capa ao livro e um de seus contos, por exemplo, possuem um diálogo belíssimo, proporcionado pela qualidade do texto de MTH -; a temática neobarroca – como a sensação de desconcerto, a inquietação, a mutação da mulher que ganha asas – e, obviamente, questões atemporais, tais como as que permeiam o universo feminino, tão bem ilustradas na epígrafe da obra: “Voar, é o gesto da mulher, voar na língua, fazê-la voar.” (Hélène Cixous).

Na página oficial de Maria Teresa Horta no Facebook, foi publicado o seguinte:

“«AZUL COBALTO»: DOZE CONTOS DE MTH NO BRASIL

A maquete da capa do livro «Azul Cobalto», título de um dos doze contos de Maria Teresa Horta que integram o volume, foi ontem enviada à escritora pela editora Oficina Raquel, do Rio de Janeiro,que anuncia a sua publicação para o próximo mês de Março. Questões burocráticas atrasaram a edição brasileira, inicialmente prevista para o ano passado, deste livro de contos de MTH – todos eles já publicados em Portugal, onde se mantêm entretanto dispersos por vários livros e revistas. Os contos agora coligidos no Brasil são, além de «Azul cobalto», «Lídia», «Calor», «Uriel», «A Princesa espanhola», «Com a mão firme e doce», «Raízes», «Laura e Juliana», «Efémera», «Eclipse», «Leonor e Teresa» e «Transfert». «Calor» é uma versão revista de um conto publicado no «Expresso» em 17 de Março de 1973, sob o título «Mónica». A utilização mais tarde, por esquecimento da autora, do mesmo título num outro conto com um entrecho completamente diferente (este já publicado no Brasil na colectânea «Intimidades», de várias autoras, e actualmente editado em e-book pela Dom Quixote-Leya em Portugal), levou Maria Teresa Horta a reescrever o conto do «Expresso» e a dar-lhe um novo título.”

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Em breve, a Oficina Raquel promoverá o lançamento de Azul cobalto. Estudiosos da obra de Horta, interessados em literatura portuguesa e amantes do belo (e do político) literário não deverão perder o evento.


E se Camões fosse aquariano?

Autor brasiliense, um dos escritores agraciados com o Prêmio Icatu de Artes, mergulha em jogo poético para simular qual signo teria regido o criador de Os Lusíadas

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Toda vez que pisa em Brasília, o poeta e professor Luis Maffei sente-se cindido ao meio. É como se estivesse cortado por uma fenda e se formasse um abismo em si. De um lado, está o homem nascido na capital e levado ainda menino para outras terras. De outro, o forasteiro, cujos olhos curiosos parecem sempre correr a cidade monumental com o desejo de vasculhar até o que está à sombra dos vãos. Íntimo e simultaneamente estranho, ele confessa que se desloca pelo território natal à caça de esmiuçar a realidade de espaços amplos e perturbadores. “Brasília é um espanto!”, revela o escritor, um dos seis selecionados pelo Prêmio Icatu de Artes, um dos mais respeitados do país, com o livro Signos de Camões.

Esse olhar de navegador em busca de outros mundos o fez enveredar pelos mares da poesia ainda adolescente. Entre 14 e 15 anos, Maffei mergulhou, sem anteparo algum, numa infinidade de livros e filmes. Rapaz, curioso descobridor de universos, passou a pensar as relações com o mundo a sua volta a partir de uma mediação poética. “Entre outras características, a poesia é a arte da desconfiança. Nesse sentido, acredito nela como em poucas outras expressões de nossa espécie.”
Tragado pelo poético, Maffei se viu diante de um dos maiores desafios. O de navegar pelo misterioso mar de Luís de Camões, o autor que deu ao português a dimensão de língua, com o lançamento de Os Lusíadas, publicado originalmente em 1572. Assim como o escritor que criou uma representação do povo e da nação portuguesa a partir dos feitos de Vasco da Gama, Maffei põe a postos a caravela para explorar as possibilidades que giram em torno da data de nascimento do autor lusitano, cercada de histórias e mistérios.

Sabe-se que Camões foi concebido por volta do ano de 1525 e nada mais. “Delicio-me com a astrologia. Ela permite, muito mais que determinações fixas, movências de caracteres muito poderosas – um mapa astral é coisa riquíssima. Como não se sabe a data de nascimento de Camões, procurei que cada poema lidasse com traços da obra camoniana que fossem mais próximos a características gerais dos respectivos signos.”

Unindo poesia e astrologia, Maffei rodou o leme pelo zodíaco. Trocou o mapa-múndi pelo astral na tentativa de se aproximar de um Camões que ecoasse nele. A procura era antiga. Não apenas como poeta, mas como professor de literatura portuguesa da Universidade Federal Fluminense. “O primeiro nó do processo foi realmente ‘um nós’: Camões e eu. A procura dos poemas foi dupla, pois era preciso achar um pouco da voz camoniana e, acima disso, a minha. Atar os nós nesse processo teve que ver, por exemplo, com explorar formas fixas muito visitadas por Camões, como a canção, e outras por ele menos exploradas, como a sextina, e duplicar um soneto, pondo nele uma dobradiça. Além disso, precisei confrontar-me com os signos poéticos camonianos, e isso fez do processo de escrita um processo de leitura, entendimento e mudança.”

 

Adequando formas poéticas e temas ao encontro desse duplo eu, Maffei criou um instigante jogo com o leitor. Ao fim de cada signo, fica-se livre para aproximar as possibilidades em torno da influência cósmica sobre a poesia camoniana. “Alguns leitores procurarão traços seus no poema de seu signo, e, nos outros, de pessoas próximas. Caso leiam Signos de Camões como um livro de poemas exige ser lido, ou seja, lenta e repetidamente, poderão sair dos signos zodiacais imediatamente considerados para os signos poéticos que se encontram à espera de finos olhos.”

 

É evidente que Luis Maffei só conseguiu adentrar com essa missão no universo camoniano porque conhecia muito bem os caminhos do poeta. O processo de escrita, no entanto, alterou sua forma de ver o escritor. Agora, ele o examinou com olho de poeta. Antes, sempre o fez como leitor especialista. “Pude explorar das formas fixas e das não fixas, como nos casos de áries e escorpião, poemas sem versos, e de aquário e leão, poemas no chamado verso livre.”

Maffei fez o mapa astral. É aquário com ascendente em touro. Passou a gostar da astrologia pelos sentidos humanos e humanizantes que o zodíaco constrói e pela imensa gama de narrativas que possibilita. “Como produção de sentidos a ler, acredito nela, pois não a vejo como postulante de uma verdade aprisionadora.” Em Signos de Camões, ele não arrisca suspeitar, com responsabilidade, qual teria sido o signo desse poeta plural. Aliás, manter esse enigma faz do livro um mar a ser revisitado.

 

SIGNOS POÉTICOS

 

Por Luis Maffei

 

ÁRIES
A ti, persigo-te como fogo, como uma criança que tem fome e eu as tenho, a criança e a fome, razões de ser com 
muitas faces

TOURO
Neste andar em labirinto, tenho a mim e ao meu valor, tela inteira cuja 
cor como a ti, me esmero e pinto: doto a língua 
de sabor

CÂNCER
Angústia de remar eu não contorno espelho do meu rosto em fim me torno

GÊMEOS
Encontro-te buraco negro e calvo, teu gesto em maternal sepultamento, da ausência sua agora muito privo

LEÃO
E que depois de depois de depois. O público se mova para ver o artista 
e nade pelo menos pelo livro: um olho no peixe, outro em mim. Mesmo para sabermos se andam bem o broche e a comitiva

VIRGEM
Ao eco do assombroso maquinário adumbram 
as flores ocas de veneno em mole mas benévola oficina, sinais de trafegar que eu mesmo teste, 
o trânsito obnubila 
o panorama. As rua engarrafam sua espessura
LIBRA
Estou com as pernas sobre o precipício, os pés de ambos os lados do barranco; Qual boca diz que induz somente ao vício Armar concertação de cada flanco?

ESCORPIÃO
Sem ser visto, 
começo a abandonar 
a construção. Vejo mais que nunca, calo como nunca, estou invisível como nunca estive 
nem voltarei a estar

SAGITÁRIO
Lisboa é só Rio quando lugar ameno, é palco onde enceno, um rosto em 
que vejo, em que sorrio

CAPRICÓRNIO
Mar ou terra, tudo em torno se trabalha e se renova; cada coisa é a própria prova, cada estar é o seu retorno. Paciente

AQUÁRIO
Depois me caiba a sina 
de soprar cantando 
ao mundo a muita 
parte de invenções 
e ensinamentos, ouço: 
a minha vida é isto

PEIXES
Já noite sem luar, 
mar sem ventura, delfins 
sem peso e barcos sem poderes. Há signos com real, não sei se há cura

 

Signos de Camões

 

 

Astróloga literária

 

No processo de criação, Luis Maffei contou com a consultoria de Roberta Ferraz, poeta, astróloga, ficcionista e doutoranda em literatura portuguesa na USP. Ela escreveu o posfácio d do livro e confessa que a obra a aproximou como nunca do poeta lusitano. “Se isso acontecer com os leitores, será uma grande alegria para mim”, sonha Maffei

 

Quem tem medo de Os Lusíadas?

 

 

Luis Maffei, no Real Gabinete Português
de Leitura, diante da estátua de Camões:
livro também publicado em Portugal

Tem muita gente que tem medo de enfrentar Os Lusíadas por achar um livro dificílimo e até enfadonho. Luis Maffei o encarou pela primeira vez, de cabo a rabo, na faculdade, com 20 e poucos anos. Como deu muitas aulas, e até cursos inteiros sobre Os Lusíadas, correu os olhos diversas vezes sobre o livro. “E sempre volto a ele, e sempre voltarei”, avisa.

 

Para quem pensa em se aventurar na epopeia de Camões, Luis Maffei aconselha que o leitor tenha em mãos um bom livro crítico que indique os caminhos da obra, que é “pura transgressão e lirismo”.  Ele enfatiza que, no correr do tempo, Os Lusíadas foi lido de forma conservadora, sem o gozo poético. “O Brasil tem alguns admiráveis leitores de Camões. Na poesia, posso citar Carlos Drummond de Andrade e Manoel Bandeira”, destaca Luís, contando que a afilhada poética dele, Julia, leu com 14 anos, e muito bem.

Maffei defende que Camões é a mais perfeita definição do poeta clássico. “Portanto, muitos versos seus são conhecidos e citados por pessoas que nem sabem que o estão citando. A poesia, em geral, tem sofrido, nesta contemporaneidade, um bocado surda. Neste país de educação básica capenga, um silenciamento terrível. Por isso, nem Camões nem poeta algum têm a leitura e os leitores que merecem.”

 

Fonte: http://sites.correioweb.com.br/app/noticia/encontro/revista/2013/12/03/interna_revista,913/e-se-camoes-fosse-aquariano.shtml


Belo prefácio de Marlene de Castro Correia ao inteligentíssimo O Comedor de Salamanca, de Jorge Fernandes da Silveira

Inventário de perdas e ganhos

Marlene de Castro Correia

 

Qual um peculiar Fernão Mendes Pinto do século XXI, Jorge Fernandes da frentecomedorSilveira viaja não somente para fora, como também – ou sobretudo – para dentro de si mesmo. Fora, a queda trágica de sua (nossa) querida Espanha, acossada pela crise econômica que a empobrece e destitui de seu recente renascimento; dentro, os fantasmas do doloroso passado da família amada. Guiguita é a estrela-guia (é rima e é solução…) do périplo existencial de Jorge pelas ruas de Salamanca. Guiguita e Salamanca. Salamanca e Guiguita. Unidas, indissociáveis, a elas se agrega a presença-ausência da “saudosa analista”. Juntas, as três encaminham o narrador à morada de Dom Miguel de Unamuno e à revelação do “sentimento trágico da [minha] vida”. Que homenagem mais eloquente e comovente do que esta, a de fazer da cidade de Salamanca a parceira da conturbada aventura do autodescobrimento do narrador, que a promove a espaço sagrado de uma epifania?

Acontece, no entanto, que Dom Miguel apreendeu também El sentimiento cómico de la vida. E também Jorge, com sua têmpera ibérica, relata a sua Paixão e vida com o sal de refinado humour.

Já nos dez breves tópicos das primeiras páginas, o autor arrisca o lance de dados com os quais jogará no desenrolar de narrativa, dinamizando-os com diversidade de modulações, acréscimo de motivos e permutações entre variantes. Neles constatamos, ainda, a fidelidade, que se confirmará ao longo do texto, à epígrafe que o norteia: “Tampoco se habla de la pérdida de esa capacidad de los hombres antiguos de transformar en relato los mínimos acontecimientos de sus vidas”. Exemplo? O cardápio do Comedor Universitario Fray Luís de León é descrito com minúcias; o itinerário seguido pelo protagonista desde sua casa até a Facultad de Filología é acompanhado passo a passo pelo leitor, que é informado de nomes de ruas, de números de casas, do tempo gasto na caminhada etc etc.

Estes “mínimos acontecimientos”, no entanto, não se esgotam em si mesmos, pois Jorge os maneja como índices de uma realidade segunda, de maior amplitude e complexidade, da qual se tornam signo e símbolo: o cardápio, menos farto e mais caro, da crise que assola o país, privando-o do exercício de sua tradicional hospitalidade e generosidade, agora só praticada entre amigos; os marcos e passos de casa à Faculdade, do esboço da construção mitológica da identidade do narrador, predestinado a dar prosseguimento aos valores e viagens dos ancestrais portugueses, herdeiro que é de seu encontro-confronto com novas terras, etnias e culturas.

A informação pormenorizada de situações e circunstâncias – “Sentado na sala do 1º andar da C/Vasco da Gama, 9, nesta manhã de sábado de temperatura menos dura” – induz o leitor a evocar a poética de tradição realista; mas a vertigem das associações de ideias e das superposições de espaços e tempos heteróclitos, o uso recorrente do ready-made e a colagem de recortes de jornais – procedimento básico da obra – transportam-no rapidamente para as poéticas de vanguarda de início do século XX; logo logo, porém, a espantosa profusão de citações, em aparência anarquicamente amontoadas com a velocidade de fluxo da consciência, e rebeldes a qualquer hierarquização de suas fontes, deslocam o leitor aturdido com a surpreendente extensão e versatilidade do repertório do narrador para o movediço terreno da Pós-Modernidade. O comedor de Salamanca delineia-se portanto, logo de início, como espaço de confluência e aglutinação de matrizes poéticas discordantes e contrastantes, que enformam a dialética de sua composição.

Nos dez tópicos de abertura da narrativa, convivem sem preconceito o “como dói” de Drummond, o Magriço de Camões com “Seu Garçom faça o favor de me trazer depressa” de Noel Rosa, o Quixote de Cervantes com a marchinha getulista “Bota o retrato do velho” de Haroldo Lobo e Marino Pinto, o cinema iconoclasta de Buñuel com o sentimentalismo popularesco do filme Marcelino pan y vino.

Mas não se iluda o leitor… Jorge engana, “como um jogador de futebol”, Jorge engana… A dinâmica da associação de ideias não é regida só pelo acaso, nem impulsionada necessariamente por semelhanças fônicas, não se configurando como logicamente aleatória ou arbitrária. O exame mais detido nela descobre um grau de coesão, que aponta para um discurso coerentemente organizado. Já que me vali do símile drummondiano do “jogador de futebol”, que confunde com seus dribles os adversários, recorro a outra imagem do Poeta de todos nós, que define a dialética de sua escrita ao caracterizar metaforicamente as palavras como “servas de estranha majestade” (“A Luís Maurício infante”). Fenômeno semelhante ocorre em O comedor de Salamanca: suas inesperadas associações de ideias indiciam a dialética impulsão/reflexão, espontaneidade/lucidez. Se Jorge não as rege, sem dúvida as concerta no corpo orgânico do relato. Cite-se, como exemplo, o tópico intitulado Recortes, no capítulo sobre a viagem a Istambul.

O conjunto de procedimentos de linguagem e técnicas de contar adotados no primeiro capítulo desenham um pattern discursivo-narrativo que será retomado no decorrer do livro. Pattern abrangente, portanto, mas não exclusivo, pois O comedor de Salamanca estrutura-se como obra de natureza experimental, ensaiando o autor vários modos de contar e dizer. O último tópico da abertura, o da caminhada do narrador até a Faculdade, já o comentamos; O penúltimo é uma pequena jóia, na qual se incrustam apropriações e/ou citações de reverberação dissonante: “Conversa de botequim”, de Noel Rosa, abruptamente transposta da clave cômica para a melodramática, em irônico disfarce de seu teor trágico; o denso e intenso filme de François Truffaut, A Mulher do Lado, acoplado, em surpreendente jogada de desdramatização pelo humor, à música cantada por Carmem Miranda “diz que tem, diz que tem, diz que tem, diz que tem”, a qual traz para a cena do texto a interpretação faceira e brejeira e o gestual expressivo da cantora-atriz, caricaturalmente exagerado nos filmes de Hollywood. Tudo como dissimulação da dor inerente à tragédia dos suicidas, implícita na alusão ao compositor Assis Valente e, pela contiguidade sintagmática, extensiva à Mulher do Lado. Um golpe de mestre, que aciona com eficiência a ambiguidade tragicômica do humor.

Em seu afã de experimentar diversos modos de narrar, Jorge recolhe os fragmentos-mosaicos do capítulo inaugural para agrupá-los no mural sem fissuras de “Mulher em Salamanca sentada à porta de Maria Auxiliadora. Em livro que em seu todo dá mostras sucessivas de domínio de linguagem, de alta tensão emotiva e poética, de bem tramada intertextualidade, torna-se difícil apontar seus momentos de golpes mais certeiros nos corações e mentes dos leitores. Depois de ler e reler, não me restam dúvidas; para mim este é o capítulo clímax do relato e com certeza é o meu preferido. Minhas razões? A teatralidade da narrativa, sua majestosa mise-en-scène, alicerçada em notações-rubricas disfarçadas e as múltiplas máscaras que assume A Mulher do Lado, figurante no primeiro capítulo, agora alçada a heroína trágica de mutante face. A coerência da constelação imagística, a urdidura do tecido intertextual, a elaboração mítica de fatos e acontecimentos da biografia pessoal e familiar do narrador, tudo isso são fatores de sedução do leitor, que se rende sem defesas à emoção do texto.

Pare recuperar-se do impacto, corre então para o porto seguro do humor, que encontra uma de suas mais felizes atuações no poema “Em surto nativista”, glosa de um episódio relatado em outros momentos do livro. A intertextualidade, técnica onipresente em O comedor de Salamanca, penetra portanto no poema pela via da autorreferência, para expandir-se em risonho diálogo com o indianismo de Gonçalves Dias e o nativismo parodístico de Oswald de Andrade. O sujeito poético incorpora o atributo “índio”, que lhe fora pejorativamente lançado anos atrás em Barcelona pelo policial de alfândega, e, com o malabarismo do humor, converte e reverte o “insulto” em orgulho ufanista. Sob a benção antropofágica de Oswald, Jorge devora gostosamente os tópicos tradicionais do porque-me-ufano-do-meu país, acrescentando-lhes, com a ambiguidade da ironia e do humor, as construções míticas representativas do ufanismo de hoje – o Ex-Presidente operário, a Ex-Guerrilheira Presidente, o Pré-sal. Autêntica pedra de toque do humor em seu conjunto, o poema termina com mais um achado: o recorte do célebre refrão de “I-Juca-Pirama” – “Meninos, eu vi!” – transposto do grandioso contexto épico original para as miúdas circunstâncias do cotidiano.

Se o autor é livre para tecer a sua intertextualidade, o leitor reivindica para si o direito (ou o dever?…) de, também ele, fazer associações com textos de seu repertório… “Em surto nativista” fez-me evocar Drummond e o polissêmico verso final de “Conclusão”: “se o poeta é um ressentido e o mais são nuvens?” E também Fernando Pessoa e o citadíssimo “Autopsicografia”. O dois tem pensamento convergente em relação à dinâmica da criação poética, contestando ambos a interpretação simplista do leitor “ingênuo” de que ela se realiza pela expansão direta e confessional de sentimentos; ambos valorizam, ao contrário, a re-elaboração, a re-construção do que foi sentido e sofrido: o poeta re-sente, sente de novo, ou finge, pela mediação de faculdades intelectuais e racionais, sentir outra vez o sentimento originário.

No verso de Drummond, “ressentido” não se investe apenas desse significado; termo plurívoco, ele engloba, no contexto do poema e da obra do poeta, a acepção de magoado, ofendido, pois ele, Drummond, não encontra no real a medida do ideal a que aspira enquanto poeta e talvez enquanto pessoa. “Ressentido” seria assim uma variante de “gauche”.

Fenômeno similar ocorre em “Em surto nativista. Ofendido pela atitude de menosprezo do policial, Jorge re-sente, re-elaborando-a pelo viés humorístico, a ofensa e mágoa sofridas no passado, seguindo a lição de Freud, que interpreta o humor como atitude de superioridade diante do real e como afirmação vitoriosa do eu, que se recusa a deixar-se abater pelos traumas vividos.

O humour é uma prática recorrente em O comedor de Salamanca, ao longo do qual assume os valores freudianos. Os fatos da biografia pessoal e familiar do narrador são re-sentidos, em processo de re-elaboração predominantemente mítico-trágica; com a tragicidade, convive no entanto a clave humorística, índice do triunfo do eu sobre o horror e a compaixão, emoções próprias da tragédia. O comedor de Salamanca comprova reiteradamente que humor e ironia não implicam ausência de sentimento trágico da vida, mas sim ausência de comportamento trágico diante da vida.

No processo de experimentação de linguagem que preside a O comedor de Salamanca, Jorge se vale da técnica de colagem de recortes de jornal, promovendo-a a um dos patterns mais constantes, senão o dominante, na fatura do livro. Frequentemente ele cria com o termo recorte jogos fono-semânticos, como mostram os subtítulos “Recortado Recordado”, “Recorte Recorde”, “Recorte com Cortes” e outros. Assim ressaltando-o e valorizando-o ludicamente, fisga a atenção do leitor, talvez para conscientizá-lo da multiplicidade de sentidos e da amplitude metalinguística que lhe confere: recorte ganha a função de metáfora estrutural do texto, pois ultrapassa a referência, tanto no nível da linguagem como no da metalinguagem, à extração de notícias de jornal, para estender-se ao método de composição da totalidade da narrativa, que se organiza como justaposição de recortes, fragmentos ou segmentos de vida, aos quais o autor atribui dimensão simbólica, de ordem social, existencial e mítica: a caminhada de casa à Faculdade, o relacionamento com a mulher sentada à porta da igreja, a aula sobre Cecília Meireles, a viagem a Istambul, a casa do tio Arthur etc etc.

Apropriando-me dessa técnica estruturante de O comedor de Salamanca, recorto uma vez mais de nosso Poeta maior o seu invulgar símile para caracterizar a dinâmica da narrativa e do narrador: Jorge engana, como um jogador de futebol Jorge engana… Com seus contínuos dribles, a cada passo faz irromper o imprevisível. O drible mais surpreendente talvez seja exatamente este: como é possível uma assemblage de fragmentos díspares, uma montagem e collage de recortes de vida e de jornais, elaborar-se em forma coerente e coesa? A dialética da composição do livro realiza a façanha de integrar seus componentes heteróclitos em todo orgânico. A aula sobre Cecília Meireles, por exemplo, à primeira vista “fora do lugar”, integra-se, em função dos motivos, símbolos e metáforas recorrentes de seu imaginário – viagem, mar, estrelas, ancestrais, navegadora, família distante, memória – na totalidade do texto final, construído em torno do eixo semântico viagem.

À maneira dos descobridores e navegadores do passado, que documentavam e relatavam o que viram no Novo Mundo, o narrador conta o que testemunhou em sua recente viagem a Salamanca: a crise econômica que devasta e deprime a velha Europa. Menino, eu vi. Agora sem humor e seu consolo. E sem vitória sobre o real. Derrota pura, com choro e com vela.

À maneira das narrativas mais modernas, Jorge relata também a viagem para dentro de si mesmo e a exploração do passado e da memória, em busca de autoconhecimento. Esta viagem se perfaz por caminhos vários, inclusive pela leitura dos escritores mais amados. A aula sobre Cecília Meireles insere-se nesse percurso.

Jorge engana, como… A jogada mais enganadora é feita pelos versos:

Eu não escrevo Literatura,

minha gente.

Isso é outra coisa.

 

Não acredite, leitor. O comedor de Salamanca é Literatura, sim. E da melhor.

 


Oficina Raquel na Primavera dos Livros/ RJ 2013

 

OFICINA RAQUEL COMPLETA O TIME DE EDITORAS QUE PARTICIPAM DA 13ª PRIMAVERA DOS LIVROS/ RJ, MAIOR FEIRA EDITORIAL INDEPENDENTE DO PAÍS

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A Primavera dos Livros 2013, feira literária promovida pela Liga Brasileira de Editores (Libre), terá a participação de cerca de 100 editoras de todo o País e mais de 15 mil títulos à venda, com descontos de até 50%. A 13ª edição carioca do evento, com curadoria da escritora Suzana Vargas, acontece de 24 a 27 de outubro, no Museu da República, no Catete, um bairro de forte tradição política e cultural. O público esperado na Feira é de 50 mil pessoas.

Maior feira editorial independente do País, a Primavera dos Livros reúne uma produção cultural diversificada, com alto padrão editorial. Estarão à venda literatura e vários outros gêneros, e ainda o lançamento de novos autores.

A Primavera dos Livros é uma realização da Liga Brasileira de Editoras (Libre), em parceria com o Departamento de Letras da UFRJ. O evento conta com o apoio da Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro e Biblioteca Nacional.

A Oficina Raquel, além de seu estande com livros com desconto de até 50%, realizará lançamento e contará com seus autores na programação.

No dia 25/10, sexta, às 18h, a autora Lila Maia lança seu belo livro de poemas As maças de antes, no dia 26/10, sábado, ás 16h, a autora volta ao evento para uma mesa sobre poesia feminina, ao lado das poetas Viviane Mosé e Rita Moutinho. Ainda no dia 26/10, às 18h, o poeta Luis Maffei fala de seus Signos de Camões e da influência do vate português na poesia de Vinícius de Moraes – autor homenageado no evento -, ao lado de Gilda Santos e Sérgio Nazar David. No dia 27/10, domingo, às 20h, Gerson Suares, autor de De pernas para o ar: minhas memórias com Garrincha, fala de seu padastro e amigo Mané Garrincha. O futebolístico Cronicaturas de futebol, de Fernando Miranda e Vinícius Mitchell, será lançado às 20:30 de sexta, dia 25/10. Os dois infantis, A menina que não gostava de meias, de Simone Magno e Cisko  e Bichos da Terra da água e do ar, Cristina Bend e Camila Mamede, serão lançados simultaneamente, ás 16h do dia 26/10, sábado.

SERVIÇO

24 a 27 de outubro

Horário: 10 às 21h

Museu da República – Rua do Catete, 153 – Catete – Rio de Janeiro

Para todas as idades

A entrada e a participação nos eventos são gratuitas


A voz da poesia e o grande coro

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O novo livro de Luis Maffei me chamou atenção logo pelo título: Signos de Camões. O título me revela algo que já venho desconfiando e lendo por aí e que se refere à ambiguidade. Mas não é só isso. A ambiguidade me surge pelo fato do período do autor citado no título: o Renascimento. Ora, o objetivo deste movimento era simplesmente resgatar, fazer renascer, fazer surgir como uma Fênix boa parte da cultura greco-latina. Já aí existe a ambiguidade, pois é como se dissessem: fazer o que já foi feito. Claro que nós não vamos levar isto ao pé da letra… Shakespeare, Cervantes, Dante e Camões são para mim mestres da ambiguidade. Mas qual? Explico de maneira rápida. Shakespeare pelo seu “ser ou não ser”; Cervantes pelo sei Dom Quixote, ser que vive entre o “ser ou não ser”, ou seja, entre a realidade e possibilidade de outra; Dante (tal qual Cervantes) por subordinar, na sua Comédia, a realidade a essa possibilidade que todos nós temos de outra (menos áspera?); por fim, o nosso mestre maior da língua, Camões, pois soube diversas vezes também transformar sua realidade em arte. O que quero dizer e para que fique claro é: todos de certa maneira souberam contrapor a uma realidade dada a possibilidade de outra através da arte. Agora me ponho de frente a este título como Édipo a esperar o questionamento da Esfinge, pensando: “De quem são os signos?”.

A resposta seria fácil: “Ora, de Luis!”. Mas qual?

A ambiguidade, porém, não vem para nos estacar nas dúvidas, mas pelo contrário, vem para nos possibilitar aquela possibilidade outra de realidade (nossa, de agora e sempre) e arte, ambas se misturando e nos enriquecendo. O homem mais rico não é aquele que possui riquezas, mas o que possui muitas oportunidades de obtê-las.

Luis Maffei possui as mãos presentes, esses “formidáveis instrumentos de abertura” e tenta deslocar para elas, ou melhor, para a responsabilidade da escrita desses signos uma atitude heroica. Ele sabe que escrever esses signos não é uma tarefa fácil, tem a ciência da “urgência dos começos”…  E tem mesmo o tom heroico, pois diz: “Gosto o mundo, que me goste”, isso logo me lembrou muito o desafio feito por Camões nos seguintes versos: “E sabei que, segundo o amor tiverdes,/Tereis o entendimento de meus versos”. Ambos os trechos indicam para nós leitores o desafio que também é ler estes signos.

Quando diz: “o fardo é tão leve”, volta-me a ambiguidade, pois como deve ter sido, embora prazeroso, desafiante e um pouco pesado escrever com estas mãos, não?

Outra coisa que muito me chamou a atenção foi o trabalho com os versos e com as formas poéticas. A redondilha, o decassílabo, além da oitava camoniana, a sextina, e esses maravilhosos tercetos dantescos. Além do cuidado todo especial dado ao vocabulário (“o dialeto da tribo”): “pla, uoutra” (pág. 41).

“Em minha escolha te transformas” (pág.11), que belo convite nos é feito… a ideia pertinente de mudança… ; “esgota-se a garganta de cantar” (pág. 15) e me lembro do “Não mais Musa…” da epopeia camoniana.

Na terza-rima há Dante, mas percebi a presença de Herberto e até Heráclito. Este pela “água de meu rio”, “enquanto à agua eu adormeço”; Il Fiorentino, além da forma poética: “cantando atrás do inferno de sua amada”, meu Deus! É quase que Orfeu ao reverso, magnífico! O tema do exílio é de Dante e Camões e deste há ainda a ideia do “desconcertado” (as mudanças) neste poema-concerto-desconcerto.

O embate eu x mundo tão de outro poeta como Carlos Drummond, que diga-se de passagem cantou tão bem Camões, se mostra na solidão em derredor das “multidões e mudas”. “Com quantos naus se faz um proprietário” – o desfazer dos ditados e trocadilhos (lembro algures de ter visto o mesmo procedimento em Herberto)… A figura do proprietário me recordou “os donos do mundo” de Mário de Andrade (vide “Meditação sobre o Tietê”). Incrível como desse embate nasce não a comunicação, mesmo se aos reboliços, mas o tédio, típico spleen das metrópoles: “Não mora exuberância onde a rotina é/ usança ensimesmada e nada boa” (pág. 21).

A poesia é surpreendente porque cria com palavras a mágica das percepções refratárias (de refração): “O justo não é justo se não/ sabem” (pág.22). Eis um verso que invejo e que me arrepiou… verso poderoso! Ou então: “ – é preciso guiar os/ olhos ao olho do furacão” (pág. 44).E que belo jogo de indeterminação, sofisticação, temporal, alargamento da experiência: “E que depois de depois de depois” (pág.22).

Outros versos fantásticos são: “Quando é que estimarei ser a esperança/ motor atento e a tempo deste mundo?” (pág.29). É impossível enquanto leitor não se sentir englobado por estes versos. Que jeito belo de definir Destino: “Sabido é que algum tempo passa lento/ e não nos dá a saber como se trama” (pág.29).

“Já eles, dificilmente escaparão de que os vejo, pois os vejo, e verei sempre seus movimentos” (pág.33). Posso até correr o risco de descontextualizar, mas senti neste trecho a voz de Jorge de Sena-Camões do “Camões dirige-se aos seus contemporâneos”. Também tenho a mesma impressão quando da leitura do poema das páginas 47 e 48, além de parecer também um monólogo de um new Hamlet.

Essa é a voz do poeta, do titã que que traz o fogo ao homem: “Na vida, a grande luta, /eu grito ao homem surdo/ enquanto eu tiver força, e ainda a tenho,”, mas ao mesmo tempo é o homem que também deve escutar esse grito, porque a “arte eu a estimo (ou seja, escrevo), eu a contenho (leitura, escuta da voz, do grito)” (pág. 35); “hei de agir com texto lido” (pág. 40).

O poeta Fernando Pessoa está em todo o livro, sinto-o como à espreita.

A minha leitura foi impressionista por um lado e analítica por outro, pois não tenho a veia do domínio do Zodíaco como Pessoa.

E para ficarmos em território poético português, Almada Negreiros num seu texto lá pelas tantas diz: “O gênio é a capacidade de fazer relações”. Há no jogo das relações poéticas a dinâmica das vozes. No final de tudo, o que há é o grande coro dos poetas sibilando a Voz da Poesia.

“Há signos com real, não sei se há cura” (pág.47), talvez ela exista e se os signos não são um indício, podem bem ser eles mesmos a nossa cura. É preciso saber abrir bem os ouvidos para o coro desse livro do poeta Luis Maffei, de Camões, de Dante, de Jorge de Sena e nosso também.

 

  Ranieri Basílio[1]

 


[1] Poeta, às vezes, e leitor de poesia de todos os espaços e tempos.