Inventário de perdas e ganhos
Marlene de Castro Correia
Qual um peculiar Fernão Mendes Pinto do século XXI, Jorge Fernandes da Silveira viaja não somente para fora, como também – ou sobretudo – para dentro de si mesmo. Fora, a queda trágica de sua (nossa) querida Espanha, acossada pela crise econômica que a empobrece e destitui de seu recente renascimento; dentro, os fantasmas do doloroso passado da família amada. Guiguita é a estrela-guia (é rima e é solução…) do périplo existencial de Jorge pelas ruas de Salamanca. Guiguita e Salamanca. Salamanca e Guiguita. Unidas, indissociáveis, a elas se agrega a presença-ausência da “saudosa analista”. Juntas, as três encaminham o narrador à morada de Dom Miguel de Unamuno e à revelação do “sentimento trágico da [minha] vida”. Que homenagem mais eloquente e comovente do que esta, a de fazer da cidade de Salamanca a parceira da conturbada aventura do autodescobrimento do narrador, que a promove a espaço sagrado de uma epifania?
Acontece, no entanto, que Dom Miguel apreendeu também El sentimiento cómico de la vida. E também Jorge, com sua têmpera ibérica, relata a sua Paixão e vida com o sal de refinado humour.
Já nos dez breves tópicos das primeiras páginas, o autor arrisca o lance de dados com os quais jogará no desenrolar de narrativa, dinamizando-os com diversidade de modulações, acréscimo de motivos e permutações entre variantes. Neles constatamos, ainda, a fidelidade, que se confirmará ao longo do texto, à epígrafe que o norteia: “Tampoco se habla de la pérdida de esa capacidad de los hombres antiguos de transformar en relato los mínimos acontecimientos de sus vidas”. Exemplo? O cardápio do Comedor Universitario Fray Luís de León é descrito com minúcias; o itinerário seguido pelo protagonista desde sua casa até a Facultad de Filología é acompanhado passo a passo pelo leitor, que é informado de nomes de ruas, de números de casas, do tempo gasto na caminhada etc etc.
Estes “mínimos acontecimientos”, no entanto, não se esgotam em si mesmos, pois Jorge os maneja como índices de uma realidade segunda, de maior amplitude e complexidade, da qual se tornam signo e símbolo: o cardápio, menos farto e mais caro, da crise que assola o país, privando-o do exercício de sua tradicional hospitalidade e generosidade, agora só praticada entre amigos; os marcos e passos de casa à Faculdade, do esboço da construção mitológica da identidade do narrador, predestinado a dar prosseguimento aos valores e viagens dos ancestrais portugueses, herdeiro que é de seu encontro-confronto com novas terras, etnias e culturas.
A informação pormenorizada de situações e circunstâncias – “Sentado na sala do 1º andar da C/Vasco da Gama, 9, nesta manhã de sábado de temperatura menos dura” – induz o leitor a evocar a poética de tradição realista; mas a vertigem das associações de ideias e das superposições de espaços e tempos heteróclitos, o uso recorrente do ready-made e a colagem de recortes de jornais – procedimento básico da obra – transportam-no rapidamente para as poéticas de vanguarda de início do século XX; logo logo, porém, a espantosa profusão de citações, em aparência anarquicamente amontoadas com a velocidade de fluxo da consciência, e rebeldes a qualquer hierarquização de suas fontes, deslocam o leitor aturdido com a surpreendente extensão e versatilidade do repertório do narrador para o movediço terreno da Pós-Modernidade. O comedor de Salamanca delineia-se portanto, logo de início, como espaço de confluência e aglutinação de matrizes poéticas discordantes e contrastantes, que enformam a dialética de sua composição.
Nos dez tópicos de abertura da narrativa, convivem sem preconceito o “como dói” de Drummond, o Magriço de Camões com “Seu Garçom faça o favor de me trazer depressa” de Noel Rosa, o Quixote de Cervantes com a marchinha getulista “Bota o retrato do velho” de Haroldo Lobo e Marino Pinto, o cinema iconoclasta de Buñuel com o sentimentalismo popularesco do filme Marcelino pan y vino.
Mas não se iluda o leitor… Jorge engana, “como um jogador de futebol”, Jorge engana… A dinâmica da associação de ideias não é regida só pelo acaso, nem impulsionada necessariamente por semelhanças fônicas, não se configurando como logicamente aleatória ou arbitrária. O exame mais detido nela descobre um grau de coesão, que aponta para um discurso coerentemente organizado. Já que me vali do símile drummondiano do “jogador de futebol”, que confunde com seus dribles os adversários, recorro a outra imagem do Poeta de todos nós, que define a dialética de sua escrita ao caracterizar metaforicamente as palavras como “servas de estranha majestade” (“A Luís Maurício infante”). Fenômeno semelhante ocorre em O comedor de Salamanca: suas inesperadas associações de ideias indiciam a dialética impulsão/reflexão, espontaneidade/lucidez. Se Jorge não as rege, sem dúvida as concerta no corpo orgânico do relato. Cite-se, como exemplo, o tópico intitulado Recortes, no capítulo sobre a viagem a Istambul.
O conjunto de procedimentos de linguagem e técnicas de contar adotados no primeiro capítulo desenham um pattern discursivo-narrativo que será retomado no decorrer do livro. Pattern abrangente, portanto, mas não exclusivo, pois O comedor de Salamanca estrutura-se como obra de natureza experimental, ensaiando o autor vários modos de contar e dizer. O último tópico da abertura, o da caminhada do narrador até a Faculdade, já o comentamos; O penúltimo é uma pequena jóia, na qual se incrustam apropriações e/ou citações de reverberação dissonante: “Conversa de botequim”, de Noel Rosa, abruptamente transposta da clave cômica para a melodramática, em irônico disfarce de seu teor trágico; o denso e intenso filme de François Truffaut, A Mulher do Lado, acoplado, em surpreendente jogada de desdramatização pelo humor, à música cantada por Carmem Miranda “diz que tem, diz que tem, diz que tem, diz que tem”, a qual traz para a cena do texto a interpretação faceira e brejeira e o gestual expressivo da cantora-atriz, caricaturalmente exagerado nos filmes de Hollywood. Tudo como dissimulação da dor inerente à tragédia dos suicidas, implícita na alusão ao compositor Assis Valente e, pela contiguidade sintagmática, extensiva à Mulher do Lado. Um golpe de mestre, que aciona com eficiência a ambiguidade tragicômica do humor.
Em seu afã de experimentar diversos modos de narrar, Jorge recolhe os fragmentos-mosaicos do capítulo inaugural para agrupá-los no mural sem fissuras de “Mulher em Salamanca sentada à porta de Maria Auxiliadora. Em livro que em seu todo dá mostras sucessivas de domínio de linguagem, de alta tensão emotiva e poética, de bem tramada intertextualidade, torna-se difícil apontar seus momentos de golpes mais certeiros nos corações e mentes dos leitores. Depois de ler e reler, não me restam dúvidas; para mim este é o capítulo clímax do relato e com certeza é o meu preferido. Minhas razões? A teatralidade da narrativa, sua majestosa mise-en-scène, alicerçada em notações-rubricas disfarçadas e as múltiplas máscaras que assume A Mulher do Lado, figurante no primeiro capítulo, agora alçada a heroína trágica de mutante face. A coerência da constelação imagística, a urdidura do tecido intertextual, a elaboração mítica de fatos e acontecimentos da biografia pessoal e familiar do narrador, tudo isso são fatores de sedução do leitor, que se rende sem defesas à emoção do texto.
Pare recuperar-se do impacto, corre então para o porto seguro do humor, que encontra uma de suas mais felizes atuações no poema “Em surto nativista”, glosa de um episódio relatado em outros momentos do livro. A intertextualidade, técnica onipresente em O comedor de Salamanca, penetra portanto no poema pela via da autorreferência, para expandir-se em risonho diálogo com o indianismo de Gonçalves Dias e o nativismo parodístico de Oswald de Andrade. O sujeito poético incorpora o atributo “índio”, que lhe fora pejorativamente lançado anos atrás em Barcelona pelo policial de alfândega, e, com o malabarismo do humor, converte e reverte o “insulto” em orgulho ufanista. Sob a benção antropofágica de Oswald, Jorge devora gostosamente os tópicos tradicionais do porque-me-ufano-do-meu país, acrescentando-lhes, com a ambiguidade da ironia e do humor, as construções míticas representativas do ufanismo de hoje – o Ex-Presidente operário, a Ex-Guerrilheira Presidente, o Pré-sal. Autêntica pedra de toque do humor em seu conjunto, o poema termina com mais um achado: o recorte do célebre refrão de “I-Juca-Pirama” – “Meninos, eu vi!” – transposto do grandioso contexto épico original para as miúdas circunstâncias do cotidiano.
Se o autor é livre para tecer a sua intertextualidade, o leitor reivindica para si o direito (ou o dever?…) de, também ele, fazer associações com textos de seu repertório… “Em surto nativista” fez-me evocar Drummond e o polissêmico verso final de “Conclusão”: “se o poeta é um ressentido e o mais são nuvens?” E também Fernando Pessoa e o citadíssimo “Autopsicografia”. O dois tem pensamento convergente em relação à dinâmica da criação poética, contestando ambos a interpretação simplista do leitor “ingênuo” de que ela se realiza pela expansão direta e confessional de sentimentos; ambos valorizam, ao contrário, a re-elaboração, a re-construção do que foi sentido e sofrido: o poeta re-sente, sente de novo, ou finge, pela mediação de faculdades intelectuais e racionais, sentir outra vez o sentimento originário.
No verso de Drummond, “ressentido” não se investe apenas desse significado; termo plurívoco, ele engloba, no contexto do poema e da obra do poeta, a acepção de magoado, ofendido, pois ele, Drummond, não encontra no real a medida do ideal a que aspira enquanto poeta e talvez enquanto pessoa. “Ressentido” seria assim uma variante de “gauche”.
Fenômeno similar ocorre em “Em surto nativista. Ofendido pela atitude de menosprezo do policial, Jorge re-sente, re-elaborando-a pelo viés humorístico, a ofensa e mágoa sofridas no passado, seguindo a lição de Freud, que interpreta o humor como atitude de superioridade diante do real e como afirmação vitoriosa do eu, que se recusa a deixar-se abater pelos traumas vividos.
O humour é uma prática recorrente em O comedor de Salamanca, ao longo do qual assume os valores freudianos. Os fatos da biografia pessoal e familiar do narrador são re-sentidos, em processo de re-elaboração predominantemente mítico-trágica; com a tragicidade, convive no entanto a clave humorística, índice do triunfo do eu sobre o horror e a compaixão, emoções próprias da tragédia. O comedor de Salamanca comprova reiteradamente que humor e ironia não implicam ausência de sentimento trágico da vida, mas sim ausência de comportamento trágico diante da vida.
No processo de experimentação de linguagem que preside a O comedor de Salamanca, Jorge se vale da técnica de colagem de recortes de jornal, promovendo-a a um dos patterns mais constantes, senão o dominante, na fatura do livro. Frequentemente ele cria com o termo recorte jogos fono-semânticos, como mostram os subtítulos “Recortado Recordado”, “Recorte Recorde”, “Recorte com Cortes” e outros. Assim ressaltando-o e valorizando-o ludicamente, fisga a atenção do leitor, talvez para conscientizá-lo da multiplicidade de sentidos e da amplitude metalinguística que lhe confere: recorte ganha a função de metáfora estrutural do texto, pois ultrapassa a referência, tanto no nível da linguagem como no da metalinguagem, à extração de notícias de jornal, para estender-se ao método de composição da totalidade da narrativa, que se organiza como justaposição de recortes, fragmentos ou segmentos de vida, aos quais o autor atribui dimensão simbólica, de ordem social, existencial e mítica: a caminhada de casa à Faculdade, o relacionamento com a mulher sentada à porta da igreja, a aula sobre Cecília Meireles, a viagem a Istambul, a casa do tio Arthur etc etc.
Apropriando-me dessa técnica estruturante de O comedor de Salamanca, recorto uma vez mais de nosso Poeta maior o seu invulgar símile para caracterizar a dinâmica da narrativa e do narrador: Jorge engana, como um jogador de futebol Jorge engana… Com seus contínuos dribles, a cada passo faz irromper o imprevisível. O drible mais surpreendente talvez seja exatamente este: como é possível uma assemblage de fragmentos díspares, uma montagem e collage de recortes de vida e de jornais, elaborar-se em forma coerente e coesa? A dialética da composição do livro realiza a façanha de integrar seus componentes heteróclitos em todo orgânico. A aula sobre Cecília Meireles, por exemplo, à primeira vista “fora do lugar”, integra-se, em função dos motivos, símbolos e metáforas recorrentes de seu imaginário – viagem, mar, estrelas, ancestrais, navegadora, família distante, memória – na totalidade do texto final, construído em torno do eixo semântico viagem.
À maneira dos descobridores e navegadores do passado, que documentavam e relatavam o que viram no Novo Mundo, o narrador conta o que testemunhou em sua recente viagem a Salamanca: a crise econômica que devasta e deprime a velha Europa. Menino, eu vi. Agora sem humor e seu consolo. E sem vitória sobre o real. Derrota pura, com choro e com vela.
À maneira das narrativas mais modernas, Jorge relata também a viagem para dentro de si mesmo e a exploração do passado e da memória, em busca de autoconhecimento. Esta viagem se perfaz por caminhos vários, inclusive pela leitura dos escritores mais amados. A aula sobre Cecília Meireles insere-se nesse percurso.
Jorge engana, como… A jogada mais enganadora é feita pelos versos:
Eu não escrevo Literatura,
minha gente.
Isso é outra coisa.
Não acredite, leitor. O comedor de Salamanca é Literatura, sim. E da melhor.